Democracia, sexualidade e profanação de objetos religiosos
Os católicos têm o direito de ser respeitados em suas crenças e de defender suas posições políticas e morais no espaço público
Por Paulo Vasconcelos Jacobina
Brasília, 12 de Junho de 2015 (ZENIT.org)
Estamos vivendo um daqueles momentos de grandes mudanças sociais, em que pensar se torna difícil, e até mesmo perigoso. Há uma apropriação da língua por alguns grupos sociais, que impõem aos outros seus próprios critérios de falar, dificultando o diálogo; mas a democracia pressupõe a autorização para que todos usem a língua comum, e se um grupo, alegando “conhecimentos superiores”, consegue apropriar-se do próprio falar e adquire o direito de classificar o discurso divergente como “hate speech”, ou “fala de ódio”, simplesmente por ferir as emoções ou os interesses do grupo dominante, a partir de critérios estabelecidos pelo próprio grupo dominante, a democracia fica ameaçada.
De fato, conversando com um colega, no meu trabalho, ele me disse, em tom de quem profere uma grande verdade filosófica: “no fundo, somos todos ditadores de nossas próprias ideias”. Ora, se isto é verdade, então significa que todo diálogo apenas tem a aparência de debate, mas esconde apenas a profunda possibilidade de qualquer compreensão mútua. A base para a convivência passa a ser, então, o puro e simples poder. Se todos somos apenas ditadores de nossas próprias ideias e todo diálogo é no fundo (diz ele), um encobrimento daquilo que apenas pode ser uma tentativa de imposição ao outro de nossos próprios valores, então no fim estaremos cortando-nos os pescoços em público. E quem tiver a maior cimitarra terá, afinal, a razão. E os militantes do “Estado Islâmico” são apenas vanguardistas naquele caminho que, mais cedo ou mais tarde, por necessidade, todos trilharemos, se isto que este colega me disse for verdade.
Mas não creio nisto. Sou um inveterado defensor da razão humana, com todos os seus defeitos. Creio realmente que, mesmo com suas limitações, somente a razão pode nos tirar da enrascada civilizacional em que nos metemos. Mas é preciso conversar, dialogar, munir-se de paciência, já que, de todos os lados, haverá quem aposte na própria força como meio de sobrepujar o outro, acusando-o, simultaneamente, de fazer o mesmo. Quem declara publicamente que qualquer exposição pública de ideias é apenas uma tentativa velada de dominar, de subjugar, já esqueceu a diferença entre as tribunas e as guilhotinas. Pode até sentir-se como um “grande pensador”, ou como talvez alguém com uma visão “mais profunda” da “hipocrisia humana”, mas no fundo estará apenas declarando que, quando tiver nas mãos a cimitarra, não hesitará em usá-la para degolar o outro.
Exemplifico o que estou pensando, com um problema muito grave que ocorre neste exato momento. Falo da situação ocorrida na recente “Parada Gay” em São Paulo, quando mais uma vez, e previsivelmente, símbolos religiosos foram profanados pelos que participavam deste evento. Esta profanação elevou muitos ânimos, de todos os lados, e deixou a todos impossibilitados de dialogar. Mas algumas perguntas vieram-me à mente por conta deste incidente – perguntas que, creio, devem ser aprofundadas e debatidas, independentemente das posições firmes que devem ser adotadas pelos responsáveis legais e pelos líderes religiosos. Não são acusações, não são sequer posições, mas apenas perguntas que, creio, podem contribuir para pensar e encaminhar o debate.
A primeira pergunta que me ocorre é: por que profanar o crucifixo? Por que esta escolha com relação especificamente a este objeto?
Há notícias recentes de que, no Oriente Médio, seguidores de uma religião não-cristã, ao chegarem ao poder, estão atirando homossexuais do alto de prédios como pena para o que eles consideram intolerável, que é a simples existência de pessoas assim. Por outro lado, a religião cristã sempre conviveu com os homossexuais, embora esta convivência tenha gradações segundo a “denominação” cristã de que se esteja tratando aqui. Com matizes que vão de um fundamentalismo bíblico mal ajambrado até a criação de “igrejas homossexuais”, nunca houve, em nenhuma faceta do cristianismo, nada nem remotamente parecido com a violência que se vê agora no Oriente. Mas não se vê, nestas mesmas “Paradas”, nenhuma manifestação, nenhuma alusão, nenhuma crítica, nenhuma menção, a tais religiões. Nem sequer em solidariedade àqueles que morreram executados lá, por terem condição homossexual.
Outro paradoxo, este de viés mais intrinsecamente ocidental: sabe-se que a Igreja Católica sempre viu as pessoas com inclinações homossexuais com muito carinho. A orientação oficial de Igreja sempre foi a de que eles “devem ser acolhidos com respeito, compaixão e delicadeza. Evitar-se-á para com eles todo sinal de discriminação injusta”, diz o Catecismo da Igreja Católica, § 2358. É claro que alguns políticos ligados a denominações evangélicas fazem do combate à homossexualidade a sua bandeira para conseguir votos e recursos; radicalizam e, algumas vezes, podem proferir condenações às pessoas homossexuais que vão muito além da letra bíblica e da sã doutrina católica.
Mas normalmente estes religiosos são ligados exatamente a denominações, seitas e grupos cristãos que acusam os católicos de “idolatria” por venerar e respeitar imagens como o crucifixo. Ora, seria um contrassenso profanar uma imagem que alguém considera apenas idolátrica para atingi-lo. Ou então uma grande prova de gratuidade de ataque, ou de rudeza intelectual de quem ataca, incapaz de distinguir o alvo. Ou então a causa do ataque não é a discussão pública sobre o tema, nem sequer a posição da Igreja Católica quanto à chamada “questão homossexual”, mas ódio religioso anticatólico mesmo. Esta possibilidade não pode ser descartada.
Por fim, há que se perguntar sobre qual a resposta adequada a esta situação, no âmbito da discussão pública. Recentemente, o Ministério Público Federal, provocado por uma associação de ateus, impôs à TV Bandeirantes uma violenta sanção pelo fato de que o apresentador Datena reproduziu no ar, ao comentar uma reportagem sobre um crime violento, de que aquele perpetrador devia ser um “homem sem Deus no coração”. Isto foi compreendido como uma “ofensa ao Estado laico”, porque representaria um preconceito contra os ateus; houve processo e punição estatal. Ora, o apresentador estava apenas reproduzindo um pensamento do escritor russo Dostoievski, na conhecida obra “Os Irmãos Karamazov”. Parece que Dostoievski foi censurado por aqui, porque ofende aos ateus no Estado Laico. Dificilmente, porém, se pode esperar uma reação do Estado brasileiro contra o vilipêndio, o sacrilégio, de um objeto tão central para a fé cristã quanto o crucifixo. Dois pesos, duas medidas – e a cimitarra estatal vai duas vezes contra o pescoço cristão quando “laicidade” deixa de significar neutralidade.
Ora, a Igreja Católica pensa desde sempre que a inclinação homossexual existe e não é pecaminosa em si mesma, embora represente uma “desordem” objetiva; desordem, aqui, significa apenas que, como a Igreja não dissocia o ato sexual da abertura à reprodução, ter inclinação a um ato que por definição jamais pode atingir o seu fim é algo desordenado, como seria o desejo de comer areia – por mais prazer que o sabor da areia pudesse causar a alguém. Não há responsabilidade subjetiva por esta desordem, porque ela é objetiva – ninguém é pecador por desejar comer areia. Este não é, portanto, um julgamento moral, mas estritamente factual, pelo menos até que consintam com esta inclinação. Mas o julgamento da Igreja quanto à natureza da inclinação sexual não significa de modo algum que a Igreja veja nos homossexuais pessoas menos dignas, ou que pleiteie, em qualquer momento, que eles sejam menos cidadãos que os outros, ou que suas próprias opiniões e práticas que contrariem o julgamento factual da Igreja sejam considerados como juridicamente ilícitos. Ela reconhece que mesmo muitos católicos possuem estas inclinações e nem sempre conseguem vencê-las; pecam ao consentir, mas nem por isso deixam de ser católico.
Reconhece também que outros têm o direito de divergir com relação a este julgamento e pautar suas próprias vidas conforme esta divergência, sem que isto implique qualquer capitis diminutio em dignidade, cidadania ou participação social, nem ausência de direito, para os católicos, de manter suas próprias opiniões no particular. Devem, no entanto, respeitar a liberdade alheia de pensar, e portanto impor a uma velhinha católica, ou a uma criancinha, que frequente o mesmo banheiro que alguém biologicamente de sexo oposto, em nome da “defesa de gênero”, é infração à convivência democrática.
Mas a Igreja também acredita que, conforme sua compreensão do matrimônio como relação unitiva, complementar e essencialmente fértil entre homem e mulher, nenhum relacionamento que destoe de tal compreensão pode a ele ser equiparado; aí se incluem aqueles que envolvem impotentia coeundi e relações do mesmo sexo. Há excelentes razões para defender que esta é uma posição válida para todos, cristãos e não cristãos, e trazer esta posição ao campo do debate público é perfeitamente conforme à democracia. Porque não há nenhuma revelação religiosa aqui, mas fundamento antropológico filosófico e científico. E esta é a posição que os católicos vão defender sempre, porque é a posição mais racional. E as cimitarras não vão nos afastar da razão.
Fonte: Zenit.org
SAV - Pinhais
Comentários
Postar um comentário